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Vale Tudo: prêmio ou castigo?

Vale Tudo: prêmio ou castigo?

Em um país onde tantas vezes a esperteza é valorizada e a corrupção se infiltra em diversas esferas, ser honesto parece, por vezes, um ato de resistência

Por: Julienne Silveira

04/04/202507h19Atualizado

Na segunda-feira, 31 de março de 2025, estreou o remake de Vale Tudo, adaptada por Manuela Dias, na TV Globo, e com ela, mais uma vez, ressurge o questionamento: "O que você faz quando ninguém está olhando?" Essa pergunta, que ecoa desde a exibição original da novela em 1988, escrita por Gilberto Braga com o apoio de Leonor Bassères e Aguinaldo Silva, continua tão atual quanto antes. O dilema moral da honestidade ainda pulsa forte na sociedade, mas será que as respostas mudaram?

A trama clássica, que marcou a teledramaturgia brasileira, gira em torno do embate entre Raquel e sua filha Maria de Fátima. A primeira, trabalhadora e ética, vê seu mundo desmoronar diante da ambição desmedida da filha, que acredita que levar vantagem é a única maneira de vencer na vida. As icônicas cenas, na qual Marco Aurélio foge do país após uma série de falcatruas e faz um gesto com os braços (sinal de banana) para o Brasil e a morte da vilã Odete Roitman, a pergunta que popularizou “Quem matou Odete Roitman?”, a novela ainda provoca reflexões inquietantes.

Em 2019, um estudo publicado na revista Science, conduzido por pesquisadores das Universidades de Michigan, Utah e Zurique, analisou a honestidade cívica em 40 países ao distribuir 17 mil carteiras em 355 cidades, contendo diferentes quantias e informações de contato. A Suíça foi considerada o país mais honesto, com taxas de devolução de 70% para carteiras sem dinheiro e 80% para as com dinheiro, seguida por Noruega, Holanda, Dinamarca e Suécia. A Alemanha ficou em 9º lugar e a França, em 10º. O Brasil ocupou a 26ª posição, com taxas de 35% e 50%, respectivamente, figurando no terceiro grupo ao lado de Itália, Grécia e África do Sul. A China teve o pior desempenho, com devoluções entre 0,9% e 20%.

Foto: Reprodução | IA

Foto: Reprodução | IA


O Brasil está no grupo dos países mais desonestos do mundo, um dado alarmante que reflete desafios culturais e sociais relacionados à ética e à cidadania. A 26ª colocação no ranking, com apenas 35% de devolução de carteiras sem dinheiro e 50% daquelas com dinheiro, evidencia um cenário preocupante em comparação com nações mais honestas, como Suíça e Noruega. Esse resultado sugere a necessidade de investimentos em educação, conscientização e fortalecimento de valores éticos para promover uma sociedade mais íntegra e confiável.

A noção do Bem atravessa o pensamento de Sócrates e Platão, mas com abordagens distintas. Sócrates, como retratado nos diálogos platônicos, defendia que a virtude era conhecimento e que ninguém faria o mal deliberadamente se compreendesse o verdadeiro Bem (Mênon, 77b-78b). Platão, por sua vez, amplia essa concepção ao apresentar a Ideia do Bem como a realidade suprema, comparando-a ao Sol, que ilumina o conhecimento e a justiça (A República, 505a-509b). Enquanto Sócrates enfatiza a relação entre ética e saber, Platão desenvolve uma visão metafísica e política em que o Bem é o princípio fundamental da ordem e da verdade. Para o dogma religioso, não se pode amar apenas o homem de bem e odiar o inimigo, Jesus ensina amar o próximo como a ti mesmo (Jo 13,34).

O que motiva alguém a ser honesto? Será a fé religiosa, a necessidade de dormir com a consciência tranquila, ou uma convicção inabalável de que os princípios morais devem prevalecer? Em um país onde tantas vezes a esperteza é valorizada e a corrupção se infiltra em diversas esferas, ser honesto parece, por vezes, um ato de resistência.

A honestidade pode até ser ensinada nos lares, nas escolas e nos templos, mas é na prática cotidiana que ela se firma – ou se dissolve. Devolver um troco errado, não furar uma fila, não se beneficiar de uma brecha legal, devolver a carteira encontrada, tudo isso são pequenos testes diários. O que fazemos quando ninguém está olhando define não apenas nosso caráter, mas também a sociedade que ajudamos a construir.

Diante da nova versão de Vale Tudo, cabe perguntar: os brasileiros são desonestos? Ainda nos indignamos com situações desonestas, seja roubo ou omissão ou já nos tornamos indiferentes? A honestidade ainda vale tudo? A novela está de volta, mas as respostas seguem em aberto, convidando-nos a uma profunda reflexão sobre a bússola moral que guia nossas vidas.

Julienne Silveira é mestra em Letras pela Universidade Federal do Tocantins (UFT) e graduada na mesma área pela UFT. Ela escreve quinzenalmente neste espaço. Atualmente, coordena a Escola de Extensão vinculada à Pró-Reitoria de Extensão, Cultura e Assuntos Comunitários (Proex) da Universidade Estadual do Tocantins (Unitins).

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